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Postagens

Duas Narrativas Fantásticas

Dostoiévski publicou as novelas “A dócil” e “O sonho de um homem ridículo” pela primeira vez em novembro de 1876 e abril de 1877 na revista mensal que ele próprio redigiu e editou, o “Diário de um escritor”. Em “A dócil”, um marido tem sobre a mesa de casa o corpo de sua mulher que há pouco se jogou da janela. Transtornado, o homem tenta reunir seus pensamentos e esclarecer a história para si mesmo.  Durante boa parte do casamento, sentia necessidade de subjugar a amada. Ele conduziu a relação com silêncio, frieza e indiferença. Ao tentar dar uma chance à felicidade, percebe que se tornou um estranho para a mulher. Enquanto se recorda da história, o narrador oscila entre justificativas e acusações até chegar à compreensão da verdade que se revela de modo definitivo. Em “O sonho de um homem ridículo”, um homem se depara com uma menina na rua pedindo ajuda, mas ignora completamente a aflição da criança. Afinal, ele decidiu se tornar uma pessoa indiferente a tudo e tem planos de pôr fim à

A inconveniente loja de conveniência

A senhora Yeom é uma professora aposentada e proprietária de uma loja de conveniência. Quando abre a bolsa para pegar o celular, sente a falta de uma bolsinha que contém coisas importantes, como carteira e documentos. Enquanto busca na memória o paradeiro do objeto, o toque do celular interrompe seus pensamentos. Do outro lado da linha, uma pessoa informa que encontrou seus pertences. A pessoa da ligação é Dok-go, um homem que mora na Estação Seul e não consegue se lembrar do passado. Pensando em dar apoio por fazer a coisa certa, a professora aposentada decide levá-lo à sua loja de conveniência para oferecer uma refeição, já que Dok-go se recusou a receber dinheiro. Além disso, ela diz ao homem que ele tem permissão para pegar uma marmita sempre que sentir fome. Após uma sucessão de eventos, Dok-go tem a oportunidade de trabalhar na loja no período noturno. Seja por dar uma palavra de incentivo, por ouvir os problemas das pessoas que passavam pela loja, ou mesmo por sua sinceridade,

Saber Envelhecer

Com a valorização excessiva da juventude em nossa sociedade, não é raro encontrar indivíduos apreensivos diante do envelhecimento. Afinal, essa fase da vida muitas vezes está associada à perda de vitalidade, declínio físico e saúde frágil. Mas os receios diante do acúmulo de tempo vivido não são exclusividade dos indivíduos dos tempos modernos. Pois, mesmo com todo o respeito aos idosos, os antigos também enfrentavam temores em relação ao envelhecimento. Em “Saber Envelhecer", Cícero (106 a.C. — 44 a.C.) apresenta uma obra dedicada à velhice na qual discorre sobre temas relacionados ao avanço da idade. O autor aponta a terceira idade como uma necessidade da natureza e apresenta argumentos que rebatem os principais medos conectados a esse período da vida. Cícero destaca que, em todas as estações, é possível encontrar satisfação, pois cada fase possui suas qualidades próprias, e o que devemos fazer é saber apreciar cada uma no tempo apropriado.  Em “Lélio, ou A Amizade”, o leitor se

Um experimento em crítica literária

Em “Um experimento em crítica literária”, C. S. Lewis desafia conceitos estabelecidos e propõe uma perspectiva diferente sobre a análise literária ao lançar luz na relação que o leitor estabelece com o livro. Ao longo dos capítulos, o autor chama a atenção para duas ações: usar e receber uma obra de arte. Nesse sentido, ele explica que usar a arte é como falar quando se deve ouvir ou dar quando se deve receber. Mas Lewis também complementa que não devemos ser espectadores passivos, mas ser obedientemente ativos em nossa imaginação, de forma a captar a proposta do artista. Um capítulo que chamou bastante minha atenção foi o “A respeito do mito”, no qual o autor apresenta uma compreensão que vai além do sentido antropológico. O intuito do ensaio não é estabelecer um critério para classificar histórias em míticas ou não míticas, e sim focar no modo de ler. Dessa forma — neste livro — uma história, para ser considerada um mito, depende do efeito que causa no leitor. E esse efeito não envol

A Sociedade do Anel

O Sr. Bilbo Bolseiro, o Hobbit, escolheu partir do Condado durante sua festa de aniversário e deixou uma herança para Frodo, parente órfão que ele havia adotado. Inclusive, ele abriu mão de um anel mágico que usava para desaparecer ocasionalmente. Gandalf, O Cinzento, descobre que o artefato herdado por Frodo é, na verdade, o Um Anel. O Um Anel não é apenas um objeto especial, mas sim uma fonte de poder de Sauron, o Senhor Sombrio, cujo objetivo é assumir o controle sobre a Terra-média.  Segundo Gandalf, a solução para se livrar da ameaça do Inimigo é destruir o Um Anel. E a única maneira de chegar a esse objetivo é encontrar as Fendas da Perdição nas profundezas de Orodruin, a Montanha-de-Fogo, e jogar o Anel lá dentro. Diante de tantas descobertas, o jovem hobbit não entende por que justo ele foi escolhido para carregar tamanho fardo. Frodo também compreende que o Anel não permanecerá oculto por muito tempo no Condado e que, para seu próprio bem e para o bem dos outros, precisa parti

A Morte de Ivan Ilitch

Ivan Ilitch alcançou um estágio na vida em que estava casado, tinha filhos, contava com um bom emprego, desfrutava de conforto e cultivava relações sociais importantes. Observando superficialmente a vida desse homem, é praticamente impossível não pensar que ele alcançou a realização pessoal. Contudo, o que ninguém imagina é que por trás desse cenário existe um marido infeliz, um homem que chegou a ter o trabalho como um meio para não precisar lidar com a esposa e suas reclamações, alguém com muitos conhecidos, mas talvez nenhum amigo. Apesar de uma vida vazia e mentirosa, Ivan Ilitch só conseguiu enxergar a pobreza da própria existência quando foi surpreendido por uma doença fatal.  Diante desse sofrimento, esse homem à beira da morte encontrou algum consolo na amizade de Guerássim, um indivíduo simples que trabalhava como ajudante de copeiro em sua casa. E o que mais surpreendia Ivan era como esse jovem humilde encarava a vida. Em seus últimos dias, ele também passou a encontrar algu

A Estepe (História de uma viagem)

Em “ A Estepe (História de uma viagem) ”, o leitor acompanha a viagem de um menino de aproximadamente nove anos que está em uma charrete percorrendo a estepe russa na companhia do tio Ivan Ivánitch Kuzmitchóv, do padre Khristofor Siríiski e do cocheiro Deniska. O padre e o tio tinham o propósito de vender lã. O jovem Iegóruchka, por sua vez, começou sua viagem sem entender para onde e por que estava indo, mas não demorou a descobrir que partiu para estudar.  O texto é em terceira pessoa e apresenta um narrador que expressa a perspectiva do menino e também suas próprias impressões.  “ A Estepe ” não é uma história com aventuras, ações impactantes ou mesmo reviravoltas, mas sim uma viagem com ações da natureza, interações humanas, oscilações de sentimentos, momentos de encantamento e dificuldades. “A profundeza insondável e a imensidão do céu só podem ser apreciadas no mar e na noite da estepe, quando a lua brilha. Terrível, belo e afável, o céu observa lânguido e sedutor, e sua brandura

Uma Confissão

Escrito em 1879, “Uma Confissão” registra a investigação de Tolstói sobre o sentido da vida e compreensão da fé. Nessa época, aos 51 anos, sua carreira estava consolidada na Rússia e sua fama se estendia a outros países. Ele era casado, tinha conforto financeiro e prestígio. Contudo, uma transformação de sentimentos em relação à realidade e questões sobre a finalidade da existência passaram a inquietar seu espírito. “Assim eu vivia, mas há cinco anos começou a acontecer comigo algo muito estranho: comecei a ter momentos, no início, de perplexidade, de interrupções da vida, como se eu não soubesse como viver, o que fazer, e me perdia e caía no desânimo. Mas isso passava e eu continuava a viver como antes. Depois, esses momentos de perplexidade começaram a se repetir cada vez com mais frequência e sempre da mesma forma. Aquelas interrupções da vida sempre se exprimiam com as mesmas questões: Para quê? Muito bem, mas e depois?” Em seu relato, acompanhamos recortes de sua juventude submiss

Ética a Nicômaco

“Ética a Nicômaco” é uma das mais expressivas obras de Aristóteles sobre ética e moral. O livro reúne 10 tratados que apresentam uma investigação de temas, como felicidade, virtudes morais e intelectuais, vícios, prazer, amizade e amor. Nicômaco era o filho de Aristóteles. Alguns estudiosos acreditam que o filósofo dedicou o livro ao seu descendente. Bem, este post não é uma resenha. Contudo, quero compartilhar algo marcante para mim, a felicidade segundo Aristóteles, ou a Eudaimonia. Para o filósofo, a felicidade ( Eudaimonia) não é um estado emocional transitório, mas sim o bem viver e o bem agir, a plenitude da vida, alcançados por meio do exercício da razão e prática das virtudes.  “... a felicidade é uma atividade; e a atividade, evidentemente, é algo que se faz e que não está presente desde o princípio, como se fosse algo que nos pertencesse.” No que tange à minha experiência de leitura, destaco o quanto esse livro me tirou da zona de conforto. Afinal, quando me deparei com os a

Memórias do Subsolo

“Abismo”. Na maioria das vezes em que lia ou ouvia algo a respeito da obra de Dostoiévski, percebia que essa palavra estava presente. Claro que me sentia intrigada, mas só pude ter a mínima noção do que se tratava quando terminei essa leitura. Em “Memórias do subsolo", conhecemos a mente de um homem e alguns fatos de sua vida narrados sob seu ponto de vista. O homem do subsolo se considera mais inteligente do que muitas pessoas. Além disso, ele gosta de subjugar moralmente alguns indivíduos. Ainda assim, na sua perspectiva, as pessoas devem se sentir felizes por ter a honra da sua ilustre presença.  Em contrapartida, o narrador é um homem que se sente insignificante. Suas ações são guiadas pelo rancor. Vaidade, inveja e raiva também acompanham sua rotina. E, quando as emoções baixas se fazem ausentes, ele encontra uma forma de senti-las novamente. Afinal, para esse sujeito, essa é uma forma de experienciar a vida e sair da inércia destinada às pessoas como ele, as de consciência e

A Espera

Autora: Keum Suk Gendry-Kim Editora: Pipoca e Nanquim Em “A Espera” conhecemos a história de Gwija, uma senhora coreana que, há sete décadas, espera reencontrar seus familiares.  Aos dezessete anos, Gwija casou-se às pressas com um homem desconhecido. Foi uma forma que sua família encontrou de impedir que ela fosse levada pelos japoneses para servir como “mulher de conforto” durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa. Com o tempo, a jovem conseguiu se adaptar à realidade de casada e formar uma família. Mas, devido à eclosão da Guerra da Coreia, Gwija, mais uma vez, precisou mudar sua vida da noite para o dia. Junto à família, partiu rapidamente para o Sul. Foi então que um acontecimento marcou para sempre sua existência: ela se perdeu do marido e do filho. Anos se passaram, Gwija construiu uma vida, casou-se novamente e teve mais filhos. Entretanto, essa mulher jamais conseguiu se esquecer de sua primeira família. Ela não sabe o que aconteceu com o marido e o filho. Não tem ideia se eles

Bem-vindos à livraria Hyunam-dong

Mesmo alcançando a vida ideal que preenchia os parâmetros de sucesso, Yeongju sentia falta de algo, algo em que pudesse se reconhecer. Quando chegou ao seu limite, ela deixou tudo para trás e decidiu investir em seu sonho: abrir uma livraria. Os livros ajudavam Yeongju a entender melhor os próprios sentimentos, a não desmoronar e a preencher um vazio. Portanto, muito mais do que um negócio, a livraria significava o lugar em que se sentia bem e valorizada, onde conseguia ser ela mesma. Quando me sentei para escrever este post, não consegui encontrar uma palavra melhor para descrever essa leitura do que acolhedora. Os personagens que passam pela livraria são pessoas que estão tentando viver um dia de cada vez, no seu próprio tempo, e encontrando paz no caminho que escolheram seguir. “Talvez o que eles estejam fazendo não seja considerado um grande sucesso, mas eles estão sempre crescendo, mudando e evoluindo. O julgamento alheio não importa. O fato de eles progredirem e gostarem de onde